Thaly Sanches
Minha experiência e trajetória como pessoa trans no ecossistema de negócios de impacto

Olá! Eu sou o Thaly, embaixador Choice da turma de 2017, tendo participado da primeira versão do Programa de Embaixadores 2.0. Sou uma pessoa transmasculina, UX designer e empreendedor social, e estou envolvido com projetos de tecnologia e impacto social desde 2012. Sou formado em design de mídia digital pela PUC-Rio, fiz MBA em Gestão Empresarial pela mesma e Gestão da Inovação Social pelo Instituto Amani. Passei por startups e empresas de tecnologia, sempre tentando unir impacto social com tecnologia e sustentabilidade financeira. Atualmente, sou CPO no Todas as Letras, organização de impacto que busca incluir pessoas LGBTI+ em tecnologia, além de ser o maior meetup LGBTI+ da américa latina. Também sou mentor voluntário no Impact Hub, atuo como palestrante, e sou produtor de conteúdo sobre design, experiência de usuário, tecnologia, dados, impacto social, diversidade e inclusão.
Minha trajetória
Em 2016, finalizei minha graduação em design de mídia digital pela PUC-Rio. Lembro que desde criança queria trabalhar ajudando as pessoas, e é por isso que escolhi trabalhar com tecnologia e jogos. Eu acreditava que era possível projetar experiências digitais pelas quais as pessoas passariam e poderiam, então, se tornar versões melhores delas mesmas. Durante toda a minha trajetória na faculdade, me envolvi com temáticas que uniam tecnologia e impacto social.
Tanto que meu TCC e da minha amiga foi um jogo de narrativa cyberpunk que buscava falar de questões de impacto social, diversidade e inclusão utilizando a metáfora do ciborgue. Lembro que, durante a faculdade, eu queria fazer algo voltado ao ser humano. A pesquisa acabou sendo direcionada para a questão de mulheres, porque também era do interesse da minha amiga, e essa pesquisa poderia materializar o produto que queríamos ter no TCC. Tive um leve incômodo com essa questão. Ela ficou responsável por essa parte de pesquisa mais focada em mulheres, enquanto eu trabalhava mais as questões relativas ao universo cyberpunk. Hoje vejo que esse incômodo de fazer pesquisa com mulheres foi uma disforia internalizada, porque eu nunca me vi como mulher, no final das contas. E foi assim que surgiu nosso queridinho projeto “Among Frontiers”, que também foi exposto em alguns eventos de jogos.
Como eu queria trabalhar com algo social no setor privado e fazer disso o que pagava meus boletos, comecei a me interessar por empreendedorismo ainda na faculdade. Segui fazendo domínio adicional em empreendedorismo da PUC-Rio. E, nesse tempo, encontrei uma professora de negócios de impacto, e comecei a conhecer a área. Pesquisando pela internet e buscando outras iniciativas, comecei a me adentrar mais na área. Agora, além de juntar tecnologia e impacto social, também buscava formas de escalar essas iniciativas e tornar elas autossustentáveis.
Nessa busca, encontrei o Movimento Choice, que estava com turmas abertas para a turma de 2017, e que tinha acabado de mudar o formato de capacitação. Me inscrevi e fiquei muito animado de ter sido selecionado. Quando participei da turma do Choice em 2017, fiquei no grupo focado na ODS 5, de Igualdade de Gênero. Na época, não havia me assumido trans ainda, e o projeto acabou sendo mais focado em mulheres e relacionamentos abusivos. E isso me deu um certo incômodo, porque eu nunca me identifiquei como uma mulher, mesmo sem saber que era trans.
Lembro que, durante os debates e discussões, eu sempre buscava trazer dados e informações referentes à população trans no Brasil com o objetivo de mostrar como era uma parcela marginalizada.
No final das contas, fui (e sou) a primeira pessoa trans a ser Embaixadora da Rede Choice, mesmo não me assumindo na época.
Ainda em 2017, eu e minha amiga passamos com o projeto Among Frontiers na aceleradora da Social Good Labs Brasil. Fomos para Florianópolis e participamos da aceleração. Gostamos bastante do pessoal e da aceleração proposta. Mas, mais uma vez, essas pautas sobre pessoas de recortes interseccionais não eram discutidas. Quando era um assunto discutido, geralmente era de uma iniciativa social já focada em diversidade.
Em janeiro de 2018, entrei para a organização social TODXS, para trabalhar como UX Designer no TODXS app, aplicativo que faz denúncias de casos de LGBTI+fobia e reúne um compilado sobre leis e direitos LGBTI+. Na época, fiz o processo seletivo usando ainda meu nome de registro e sem falar que era trans. Na metade de 2018, comecei a sair do armário na internet e passei a usar o nome 'Thaly'. Também passei a fazer palestras usando meu nome social.
Insisti para inscrevermos a TODXS no programa de aceleração de dados da Social Good Brasil, que havia passado por uma reforma e agora estava focado em dados para impacto social. Fomos selecionades! E fui junto com o Léo da TODXS para Florianópolis participar da aceleração. No segundo semestre de 2018, virei o Product Manager do aplicativo TODXS app. Para nossa surpresa, o TODXS app foi o único aplicativo na categoria de impacto social indicado ao Google Awards naquele ano.
Ainda em 2018, tomei a decisão de que precisava sair do Rio de Janeiro e ir pra São Paulo pra poder me assumir como realmente sou. Minha relação com meus pais estava bem complicada, e entendi que só ia conseguir seguir na vida com o que quero e sair do armário se fosse pra São Paulo.
Conversei com 3 pessoas que fizeram o curso do Amani e resolvi me inscrever para o processo seletivo usando o nome de registro. Passei! Depois que estava conversando sobre os preparativos, expliquei que era uma pessoa trans. Felizmente, fui muito bem recebido pelo pessoal do Amani, e me tornei o primeiro Fellow trans de todas as turmas.
Em 2019, me mudei para São Paulo com o objetivo de me aproximar do cenário de tecnologia da cidade, fazer a pós-graduação em Gestão da Inovação Social do Amani e conseguir um trabalho mais formal dentro da área de UX, além de me distanciar da minha família.
Até o momento, desde 2013, minha trajetória havia sido muito em ambientes de startups, projetos e empreendedorismo social. Em 2019, fui convidado a entrar para o Todas as Letras com o objetivo de expandir as atividades e fazer essa migração de meetup para organização de impacto, estruturar uma sustentabilidade financeira, dentre várias outras tarefas.
No Amani, tive uma experiência incrível, e foi de longe um dos melhores cursos que fiz na vida. Aprendi muito e busquei trazer muito da minha vivência como pessoa trans para a turma. No início, ficava meio recluso, mas depois fui me enturmando.
Mas, apesar de tudo, o conteúdo do Amani também não trazia assuntos sobre diversidade e inclusão ou sobre a realidade de pessoas em situação de vulnerabilidade, só quando trazia uma pessoa palestrante que trabalhava com um projeto específico para aquele público, como, por exemplo, mulheres.
E eu fiquei bem incomodado quando via pessoas resumindo “projeto de igualdade de gênero” à mulheres, como se resolver a questão da mulher fosse resolver todo o problema de igualdade de gênero. Não é bem assim...
Pois se a iniciativa diz focar em gênero, mas ignora pessoas trans, e foca só em mulheres, ela é uma iniciativa focada em inclusão de mulheres, e não em “igualdade de gênero”. No máximo o que pode acontecer é a iniciativa aceitar mulheres trans, mas ignorar pessoas trans masculinas e não binárias, por exemplo.
Em 2020, o Todas as Letras foi selecionado para participar da aceleração da Fundação 1bi na Movile. Passamos pela aceleração - reformamos o nome e a marca.
Posteriormente, o Todas as Letras também foi selecionado para participar da aceleração da Casulo, que era focada em pessoas empreendedoras de recortes sociais.
E, depois de tantos programas de aceleração no setor de impacto, cursos, experiências, achei um programa que tinha essa preocupação mínima com a diversidade e inclusão, na questão de colocar esse conteúdo na grade. No programa da Casulo, o tema foi abordado em alguns pontos, mesmo que minimamente.
O que eu quero dizer com tudo isso? Passei por várias capacitações, acelerações e experiências no setor de impacto social, mas em nenhuma delas eu vi o estudo sobre diversidade e inclusão como algo que faz parte da formação base. Só se falava sobre isso quando era um projeto social focado em um grupo de recorte social em específico.
Alguns dados
Empregabilidade e mercado de trabalho
90% das pessoas trans estão na prostituição por falta de oportunidades.
4% da população trans tem emprego formal.
Como fazer um projeto de empregabilidade para pessoas em situação de vulnerabilidade social se não pensarmos nessa parcela?
Educação
80% das pessoas trans não terminam o ensino fundamental.
82% é a estimativa da expulsão escolar, segundo a comissão de diversidade da OAB.
45% é a estimativa de pessoas trans que se sentem inseguras em expressar seu gênero em ambiente escolar.
2.2% é a porcentagem de pessoas trans que possuem ensino superior completo.
Como fazer um negócio social focado na educação, se não levarmos esses dados em consideração? Não faz muito sentido um negócio social focado em evasão escolar ignorar um grupo social onde esse problema é maior predominante, por exemplo.
Saúde
A expectatividade de vida de uma pessoa trans é de 35 anos no Brasil, metade da espectativa de vida da população cis.
22% é a porcentagem de pessoas trans que mantêm algum vínculo com a família depois que se assumem.
E ainda existem grupos onde meninos trans compram receitas de testosterona de origem duvidosa para poder comprar na farmácia. Sem acompanhamento médico, por não terem acesso.
Fontes: ABGLT, ANTRA e outros estudos.
Aqui eu só falei alguns dados referentes à população trans de forma geral. Temos diversos outros recortes interseccionais mesmo dentro do LGBTI+, que é enorme, pois envolve sexualidade, gênero, questões biológicas, etc. Temos também a questão racial, pessoas com deficiência, gerações, e por aí vai. A diversidade não se resume só à mulher cis hetero branca sem deficiência.
Eu mesmo, sendo uma pessoa trans, ainda sou um privilegiado dentro do meio. Estou muito longe de ser o perfil de pessoas trans predominante no Brasil
De acordo com a pesquisa da Pipe.Social de 2019, o perfil maioritário da pessoa empreendedora social ainda é o homem cis hetero branco sem deficiência padrão. Nossos vieses inconscientes, na maioria das vezes, nos fazem só olhar para pessoas que são parecidas conosco.
Ou a área de impacto social se compromete a pensar em diversidade e inclusão, incluir isso dentro do material de estudo, ou só vai continuar impactando aquela parcela mais privilegiada dentro do grupo de exclusão.
Vamos continuar essa conversa?